Como diretor da Bienal de Veneza 2016, Alejandro Aravena procurou mudar as bases da arquitetura. Ao invés de um olhar introspectivo das deficiências da profissão, como Rem Koolhaas fez em 2014, o chileno, ganhador do Prêmio Pritzker deste ano, nos pede para olhar na direção oposta — para as vastas áreas do horizonte construído, que tradicionalmente ficam além da alçada da profissão: favelas urbanas, megacidades sem natureza, zonas de conflito, portos comprometidos ambientalmente, aldeias rurais distantes.
"Acreditamos que o avanço da arquitetura não é um objetivo em si, mas um meio para melhorar a qualidade de vida das pessoas", afirma Aravena na introdução ao evento. Em outras palavras, a sua Bienal não questiona o que a arquitetura deve ser, ainda que falhe, mas sim o que poderia fazer, mas muitas vezes esquece.
Enquanto as edições de 2014 e 2016 são tão diferentes como yin e yang, elas compõem um duo elegante e estimulante, quando consideradas em conjunto. Certamente, a bienal deste ano deve à diretoria de Koolhaas. Bienais anteriores tem produzido, frequentemente, uma miscelânea de idéias que podem tornar o espalhado evento ao mesmo tempo avassalador e diluído. Em 2014, Koolhaas conseguiu fazer com que os pavilhões nacionais independentes aderissem, mais ou menos rigorosamente, a seu tema. Este ano, os pavilhões nacionais - e eventos colaterais oficiais - também se engajaram diretamente com o tema de Aravena.
O Pavilhão Central de Aravena
Em sua curadoria do Pavilhão Central, Aravena não evita as realidades obscuras. No entanto, ao invés de repreender arquitetos por ignorá-las, ele os apresenta como novos e ricos campos de engajamento. Neste sentido, suas seleções não se concentram em problemas, mas em soluções reais e potenciais, a maioria das quais podendo ser replicadas de forma simples, de baixo custo, baixo impacto, e muitas vezes de forma bela.
Enquanto você entra no Pavilhão Central da Bienal, seus olhos são imediatamente direcionados para a moldura do enorme arco de alvenaria, vencedor do Leão de Ouro de Melhor Participante. Projetado pelo arquiteto paraguaio Solano Benitez e seu Gabinete de Arquitectura, o projeto lembra instantaneamente os participantes que mais de um bilhão de pessoas do campo se deslocarão para cidades na próxima década. Na grande maioria dos casos, suas casas serão construídas sem a supervisão de um arquiteto, e nem mesmo de um mestre de obras.
Em resposta, Benitez e sua equipe projetaram um modelo extremamente simples, reutilizável, permitindo que construtores não-profissionais criassem estruturas bonitas e resistentes usando tijolos de origem local. O júri da Bienal elogiou o projeto pelo "aproveitamento de materiais simples, pela engenhosidade estrutural e pela utilização de mão-de-obra não qualificada para levar arquitetura para comunidades carentes."
Ao invés de envelopes de alta tecnologia e formas extravagantes, a paleta do pavilhão do Aravena (na verdade de grande parte da Bienal deste ano) tende a ser neutra, e as formas simples. Temos quadrados e triângulos, tijolos e terra batida. Por exemplo:
- "Mud Work!" de Anna Heringer nos relembra que "três bilhões de pessoas neste planeta vivem em edifícios feitos de lama." Sua exposição é instalada em um piso feito de taipa, que se parece muito com terrazzo (uma técnica inventada em Veneza).
- Baseado no Vietnã, Vo Trong Nghia, conhecido pelo uso inovador de bambu, revela quão pouco espaço verde resta em sua cidade nativa Ho Chi Minh. Em resposta, ele cria um labirinto meditativo de telas, coberto de mudas de bambu.
- Dentro de um pano branco esconde-se uma confusão de imagens coloridas através da qual VAV Studio documenta as formas como iranianos retornaram aos processos de construção tradicionais por conta de um boicote econômico.
- Uma exposição móvel por Eyal Weizman é dedicada à arquitetura "forense". Ela documenta a perda de edifícios e vidas - e as armas utilizadas - na Faixa de Gaza e em outras zonas de conflito no Oriente Médio.
Tudo isso está muito longe da abordagem de Koolhaas. Ele e sua equipe lotaram o Pavilhão Central com uma dissecação fria, quase zoológica das partes constituintes da arquitetura: uma parede de portas, uma galeria de corredores de ligação, uma cúpula feita para esconder-se por trás do falso teto, que esconde as entranhas funcionais de muitos edifícios contemporâneos. Não conhecido por ser agradável, Koolhaas quis forçar sua profissão a examinar suas deficiências. Ao expor o seu tema "Absorvendo a Modernidade, 1914-2014", Koolhaas deixou claro que este processo de absorção não ia ser tão agradável quanto beber em grandes goles uma taça de Prosecco (a bebida não oficial e onipresente das Bienais de Veneza).
"Nós não queremos dizer, necessariamente, 'absorver' como uma coisa feliz", disse ele na época. "É mais como a forma como um boxeador absorve um golpe de seu adversário."
A curadoria de Aravena não é necessariamente menor. Ele denuncia os "ambientes construídos banais, medíocres e maçantes" que resultam "da ganância e impaciência do capital ou da mente fechada e conservadora da burocracia." Ainda assim, como ele escreve em sua introdução ao evento, ele adere às "histórias e casos exemplares onde a arquitetura fez, faz e fará a diferença."
Variações do Tema
Os pavilhões nacionais e eventos colaterais oficiais (e não oficiais) aderiram, em sua maior parte, mais ou menos rigorosamente ao tema de Aravena "Reporting from the Front". Por exemplo:
- O Pavilhão Espanhol foi premiado com o Leão de Ouro de Pavilhão Nacional por sua exposição "Unfinished", que examina o legado do boom de construção na Espanha no início dos anos 2000, seguido da crise devastadora (e do abandono de tantos projetos inacabados) que começou em 2008. O pavilhão demonstra como alguns arquitetos "compreenderam as lições do passado recente e consideraram a arquitetura como sendo algo inacabado, em constante estado de evolução e verdadeiramente a serviço da humanidade", explicam os curadores Iñaqui Carnicero e Carlos Quintans.
- Tendo esculpido quatro novas portas em seu pavilhão (e removido 48 toneladas de tijolos no processo), a equipe da Alemanha abraça positivamente a realidade da imigração, especialmente em relação ao afluxo maciço de refugiados sírios desde 2015. Os curadores da Deutsches Architekturmuseum cobriam as paredes com histórias de cidades e bairros altamente impactados pela imigração, redefinindo "zonas problemáticas" como campos de oportunidade.
- Ocupando alguns dos maiores espaços no espalhado Arsenale, o Pavilhão Italiano toma como tema "Taking care: Designing for the Common Good" (Cuidar: Projetar para o Bem Comum). Com curadoria de TAMassociati, a exposição explora maneiras em que a "arquitetura pode e deve induzir italianos a viverem os espaços da vida contemporânea com maior foco e mais coragem."
- Literalmente relatando da linha de frente da guerra, exposição da Ucrânia conta uma história particularmente pungente. A mostra tem curadoria de IZOLYATSIA, uma fundação cultural exilada de sua sede, em Donetsk. Seu edifício em Donetsk, uma vez um próspero centro de criatividade, agora é utilizado como uma prisão. A exposição de IZOLYATSIA combina mapas, entrevistas em vídeo, visualizações de dados e modelos de arquitetura para contar as histórias de cidades que estão ao longo da fronteira volátil de facto entre os dois lados do conflito.
- O Pavilhão de Veneza é dedicado a Marghera, seu porto altamente poluído e em grande parte abandonado. Os projetos propostos incluem redirecionar as atividades dos edifícios abandonados para atividades verdes — e um plano elaborado para não apenas remover o solo tóxico e despejá-lo em outro lugar, mas para envolvê-lo com segurança com uma série de torres bonitas ascendendo do próprio terreno.
Onde Estão os Grandes Nomes?
Se você quiser ver o tipo de projeto de alto nível, altamente financiados, que geralmente dominam as exposições de arquitetura, você pode — apesar de eles terem sido amplamente empurrados para eventos periféricos. Perto de San Marco, uma galeria no interior da loja Louis Vuitton recebe "Building in Paris" (Contruindo em Paris). Uma série de modelos evocativos e desenhos feitos por Frank Gehry e equipe que documentam seu processo ao longo do projeto final para a Fundação Louis Vuitton em Paris.
No Palazzo Franchetti, uma retrospectiva homenageia a falecida arquiteta Zaha Hadid. Três de seus projetos ganham atenção especial: o Corpo de Bombeiros Vitra em Weil am Rhein (1993), o Centro Rosenthal de Arte Contemporânea em Cincinnati (2003), e o MAXXI em Roma (2009).
Sir Norman Foster entrou no evento principal com um projeto de construção de espaços para pouso de drones, de baixo custo, na África. Veículos aéreos não tripulados, ou drones, podem fornecer a entrega rápida de medicamentos e outros materiais urgentemente necessários em um continente com uma infraestrutura de transporte totalmente inadequada. O espaço para pouso de drones é concebido como um "kit de partes". Os moldes básicos e o maquinário de prensar tijolos são entregues ao canteiro de obras, enquanto matérias-primas, tais como a argila para tijolos e as pedras para a fundação, podem ser adquiridos localmente. O projeto piloto está programado para começar em Ruanda ainda este ano.
Variando de favelas a bairros desumanizados de classe média, de portos envenenados a cidades bombardeadas, o tema de Aravena "Reporting from the Front" poderia ter sido improdutivamente amplo, irrealisticamente aspiracional, ou simplesmente deprimente. Até agora, as críticas afirmam que ele conseguiu afastar-se de todos os três perigos. Comentários são amplamente positivos, e até mais leves que os que Koolhaas recebeu (tanto positivos quanto negativos). No entanto, apesar de focar numa direção totalmente nova, Aravena, assim como seu antecessor, consegue provocar. Sem oferecer prescrições definitivas, ele desafia o mundo da arquitetura a ir além dos negócios de costume, a considerar novos campos para o engajamento ativo.